É DIFÍCIL NÃO TER FÉ
Por HUGO DE AZEVEDO ( colaboração solicitada )
Tornou-se já uma expressão comum a de que a Europa e, genericamente a sociedade ocidental, procura viver «como se Deus não existisse», expressão usada em vários documentos pontifícios. Isso é evidente, por exemplo, na recusa do nome de Deus nos projectos de Constituição europeia, mas sobretudo na legislação e nos costumes familiares, em que se excluem quaisquer critérios morais cristãos, como atentatórios da liberdade individual.
Também é verdade, no entanto, o contrário: os próprios ateus, ou agnósticos, vivem «como se Deus existisse». Por uma razão muito simples: não é possível a ninguém viver doutro modo.
Ainda hoje lia um artigo no qual o autor negava o carácter científico do criacionismo (e não falava só do criacionismo «americano», que nega a evolução), pela «irracionalidade» de vermos causas e efeitos em simples coincidências do acaso. Mas a ciência procede exactamente desse modo: extraindo «leis» de acontecimentos repetitivos, pelo princípio de efeito e causa, e até de «finalidade», isto é, pela certeza de que existe uma ordem racional no universo, que a nossa inteligência consegue captar, e que tudo tem um sentido, um fim, um objectivo.
Mas onde melhor se vê que é impossível (embora se «procure») viver como se Deus não existisse, é na ordem dos «valores». Se não houvesse Deus, se tudo fosse um «acaso», não haveria mal nem bem, verdade ou erro, deveres nem direitos. Quem no-los impunha? E ninguém consegue viver assim. Os mais confessos e convictos ateus e agnósticos prezam-se da sua honestidade, criticam quem procede «mal», invocam as «grandes palavras»: dignidade, justiça, solidariedade, igualdade, etc. Que sentido teria isso, se o mundo fosse «uma história de doidos contada por um idiota»? Não conseguem imaginar sequer o que seria a sua vida, se não cressem (solapadamente) em Deus! Afinal, vivem de valores «emprestados»...
O próprio «acaso» é uma noção curiosa: um acaso que fizesse um mundo tão ordenado, inteligente, grandioso, belíssimo, riquíssimo, seria um «Acaso», com maiúscula, omnipotente e sapientíssimo, isto é, seria outro nome de Deus. E, se esse «Acaso» foi capaz de gerar seres pessoais, conscientes, livres, terá de ser Ele mesmo pessoalíssimo, conscientíssimo, libérrimo. Pois nada de puramente material, químico-físico, poderia dar origem à auto-consciência que nos caracteriza e distingue da simples matéria.
Por isso, lamento imenso que muita gente pretenda enganar-se a si mesma, negando com palavras o que confessa com a vida.
A experiência diz ainda que nos países de tradição cristã, ninguém consegue viver como se Jesus Cristo não existisse. Todos esses valores que invocam (paradoxalmante) os ateus e agnósticos radicam no Evangelho. É curioso notar que o fenómeno cultural do ateísmo e do agnosticismo é um fenómeno exclusivo do Cristianismo. Foi no Ocidente cristão que ele se formulou e daqui se estendeu. A razão é simples: uma vez que se recebeu da Igreja a sua noção de Deus, já não é possível mudar para outra noção melhor. A única maneira «lógica» de nos afastarmos de Deus tal como a Igreja O apresenta é a de negarmos a própria existência de Deus; não podemos substituí-la por nenhuma outra noção mais perfeita.
Nesse artigo, lá se volta a contrapor a superioridade da ciência à visão «infantil» ou «mágica» do «povinho», como se milhões de outros «intelectuais» não albergassem idêntica aspiração e não tivessem alcançado e elaborado profundamente as verdades transcendentes que até uma criança compreende. É, de facto, irritante para muitos intelectuais que a gente «simples» tenha aspirações mais racionais, mais metafísicas, do que eles, não desistindo de perceber este mundo e a sua própria existência. A grande fraqueza de muitos «intelectuais» é precisamente a capacidade de viverem mentalmente num mundo abstracto, virtual, imaginário, inclusivamente absurdo. Mentalmente, digo, porque, na vida real, prática, procedem como toda a gente, num mundo de causas e efeitos, racional, com valores, com sentido, com finalidade, com deveres de consciência, etc. Com Deus. Porque se pode viver com fraquezas, mas não se pode viver de contradições.
E a sua fé vai ao ponto de acreditarem na «ressurreição da carne»: senão, que sentido teria o respeito pelo corpo, ainda que morto e apodrecido? Porque não atiram os cadáveres numa fossa qualquer, de preferência asséptica? Os médicos mais endurecidos tratam dos velhotes mais degradados com uns cuidados só dignos de algo sagrado... E, se esses corpos são de entes queridos, então não se diga!
Enfim, a experiência diz que anda meio mundo a fingir que não crê, embora o finja «convictamente»... até chegar a hora em que, como dizia Köestler, «o metafísico se torna real». E nessa altura, que consolo ter alguém a rezar à cabeceira! O perigo está em habituar-se tanto a viver como quem não crê, que mesmo nessa hora se continue a representar o papel escolhido na peça... que nunca se tomou a sério.
Não foi esse o caso, mas confirmava-o um conhecido intelectual, católico, da nossa praça, já em perigo de vida: - «Sabe, nós, os intelectuais, não sabemos bem o que fazer quando temos de enfrentar a realidade...»Mas a realidade acaba por se impor, queiramos ou não. E nessa altura a fé, que se julgava perdida, rebrota habitualmente, graças a Deus, como o despertar de um sonho. De um mau sonho.
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